Snakes on a Plane
A propósito do filme Snakes on a Plane, estreado a semana passada em Portugal, transcrevo aqui um texo de Jorge Mourinha, retirado da secção de notícias do Público Online.
"Um filme "mainstream" é visto uma vez por mil pessoas. Um filme de culto é visto mil vezes por uma pessoa." É uma "boutade" mas é capaz de ser a melhor definição do que faz de um filme (ou de um livro, ou de um disco, ou de uma série de televisão) um objecto de culto: uma sensibilidade específica, demasiado oblíqua para conseguir ser apreendida pelas massas, por vezes nostálgica, por vezes visionária, que acerta na "mouche" dos gostos de uns poucos (ler: centenas ou milhares de) fiéis mais ou menos iluminados, definitivamente poucos mas indubitavelmente bons (e assinalavelmente devotos).
Um filme de culto é muitas vezes incompreendido, descartado ou ridicularizado no seu tempo (do qual está quase sempre terminalmente desenquadrado) pelos media "mainstream" para ser posteriormente reavaliado, anos depois, como pioneiro ou visionário, e atinge através do video, do DVD ou da passagem na televisão o êxito que lhe escapou na sala. É, provavelmente, esse estatuto o único traço de união entre objectos tão distintos no tempo, no espaço e no estilo como o "Blade Runner" de Ridley Scott (1982), o "Donnie Darko" de Richard Kelly (2001), as múltiplas declinações do universo "Star Trek" criadas por Gene Roddenberry, a comédia de escritório de Mike Judge "O Insustentável Peso do Trabalho" (1999) e muitos filmes de Tim Burton ou de Ed Wood.
(continua nos comentários)
6 Comments:
Mas quase todos esses filmes de culto tornaram-se filmes de culto "a posteriori", apesar de si próprios - através de um fenómeno de "boca-a-boca" passado por quem viu e se deixou seduzir por eles. Pelo contrário, "Serpentes a Bordo" já era um culto antes sequer de terem terminado as rodagens. Era, provavelmente, uma questão de tempo até a velocidade do mundo moderno acelerar o ritmo da "cultificação" - e, numa sociedade onde a Net se tornou num "forum global", onde a informação flui instantaneamente, acelerando o "boca-a-boca" que antes levava semanas, meses a construir, mais tarde ou mais cedo um filme iria atingir a sua "massa crítica" antes sequer de estar terminado. No "San Francisco Chronicle", a crítica Neva Chonin acertava na "mouche" quando escrevia que talvez nem fosse preciso que "Serpentes a Bordo" fosse sequer bom - bastava apenas a ideia do filme, a sua possibilidade, o barulho à volta da simples ideia de um filme chamado "Snakes on a Plane". "Na verdade, "Serpentes a Bordo" não precisa de estar à altura do barulho. Não tem de ser o pior filme de sempre, nem o mais engraçado, nem o mais "camp". Basta que exista em toda a sua glória de pechisbeque. A adrenalina do "hype" é um fim em si mesmo."
pioneiro. Repita-se a história para os retardatários: antes mesmo de as rodagens estarem terminadas, a Net pululava com páginas de fãs construídas em homenagem à mera ideia de "Serpentes a Bordo", falsos "trailers", falsos posters, falsos guiões, foto-montagens, "cartoons". O site Urban Dictionary (http://www.urbandictionary.com/define.php?term=snakes+on+a+plane) propõe nada menos de 42 definições para a frase "snakes on a plane", elevada pela internet a um código de calão para uma autêntica filosofia existencialista (do género "o que é que se há-de fazer?"). A histeria das cobras foi tal que a New Line não hesitou em pedir aos argumentistas que integrassem no guião algumas das sugestões feitas pelos fãs online (como a memorável frase de Samuel L. Jackson "I"ve had it with these motherfucking snakes on this motherfucking plane") e levou a filmagens adicionais que dessem ao filme mais cobras, mais sangue e mais sexo (ao mesmo tempo passando a fita à classificação etária "R" - que, na estrutura americana, equivale ao nosso velho "interdito aos menores de 18 anos"). Ou seja: o filme de culto que, antes de ser, já o era foi moldado pela própria movimentação dos fãs que o erguera ao estatuto. Face a isto, quem quer saber se o filme é bom, mau ou assim-assim? Não chega que alguém tenha tido a ideia de fazer um filme chamado "Serpentes a Bordo" e que se tenha dado ao trabalho de levar em conta as sugestões dos fãs? Não é caso único, claro: recordemos "Star Trek" (os esforços incansáveis dos fãs que durante uma década perseguiram a Paramount resultaram na ressurreição do universo de Gene Roddenberry no cinema), recordemos o recente e injustamente menosprezado "Serenity" (2005), em que o estatuto de culto atingido pela série televisiva "Firefly" levou a Universal a dar luz verde à sua recriação no grande écrã pelo autor Joss Whedon. Um outro filme que estreia esta semana levou também os fãs em conta - "Nunca Tantos Fizeram Tão Pouco", onde o nova-iorquino Kevin Smith dá sequência ao filme que o lançou como cineasta, "Clerks" (1994, nunca estreado em Portugal e ele próprio um aclamado filme de culto), insere também algumas ideias de fãs pelo meio, embora não ao mesmo nível de "Serpentes a Bordo". Quase se poderá mesmo dizer que o filme de David R. Ellis pode ser visto como pioneiro de uma nova maneira de fazer cinema "por comité" e "sob medida", integrando na sua estrutura as contribuições criativas do seu público-alvo - reproduzindo o modelo de negócio que Michael Dell aperfeiçoou com a sua empresa de computadores onde cada máquina é feita à medida das necessidades de cada comprador.
No entanto, apesar de tudo, convirá não embandeirar em arco. "Serpentes a Bordo" pode ter gerado barulho como poucos filmes o fizeram nos últimos anos, mas não é na cobertura de imprensa que o impacto se mede - antes na bilheteira ou nas vendas de DVD. Se para estas últimas é ainda cedo (embora ninguém duvide que virão a ser genuinamente impressionantes), a verdade é que "Serpentes a Bordo" pouco impacto teve no "box-office" americano: apenas 33 milhões de dólares de receitas, um resultado modesto, suficiente para a New Line "ficar em casa" com o investimento mas longe do êxito abrangente que se desejava - que o mesmo é confirmar o estatuto irredutível do filme de David R. Ellis como "filme de culto", e do filme de culto como objecto lateral ao "mainstream". E não deixa de ser interessante colocar a questão: face a estes resultados de bilheteira, será que esse pioneirismo na interactividade serviu de alguma coisa? Sem a intervenção dos fãs, sem o ano sólido de "marketing" que antecipou a sua estreia, "Serpentes a Bordo" teria tido mais ou menos sucesso, teria feito os mesmos números? Claro que não há resposta possível. Até porque, como bom filme de culto que se portou discretamente nas bilheteiras, pode mesmo ser no DVD que ele encontre o público que não teve vontade de o ir ver a sala.
Para o bem ou para o mal, o filme é aquilo que é. Outra vez Neva Chonin, no "San Francisco Chronicle": "Alguns fãs receiam que a estreia do filme seja o fim anticlimáctico de uma era, que a criatividade lunática que inspirou nos tenha feito perder de vista que, afinal, tudo não passa de um filme-catástrofe xungoso com um título fantástico. (...) Os melhores tempos podem já ter passado. Foram os preliminares que nos mantiveram agarrados, não o consumar da relação." Mas que preliminares!
Jorge Mourinha (PÚBLICO)
Mais em http://www.imdb.com/title/tt0417148/
12:43 da tarde, outubro 02, 2006
E digo-te mesmo mais, "Snakes on a Plane : The Comic Book" já existe!
2:23 da tarde, outubro 02, 2006
Amigo, criei um novo blog para o bar onde sou DJ - www.altobar.blogspot.com - se puderes, faz um link e espalha a palavra!
Abraço grande,
G.
3:37 da tarde, outubro 02, 2006
Só por curiosidade, Mr. Brightside: Vais ver este filme 1000 vezes?
3:32 da tarde, outubro 03, 2006
Dono,
Cobras, aviões, Samuel L. Jackson... Acho que vou levar o meu culto para outras paragens.
:)
5:52 da tarde, outubro 03, 2006
Estou a ver. Eu ainda estou a pensar se vou ver se nao (mas tenho a vantagem de toda esta actividade quase comunista ao redor do filme - arte por comité?!?!?) me ter passado ao lado.
11:54 da manhã, outubro 04, 2006
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